Mais do que ritmo, o funk brasileiro é um movimento de resistência
Conversamos com Tamiris Coutinho, pesquisadora do tema, sobre a história do funk no Brasil, as mulheres que participaram da construção da cena e sobre o funk como potência de empoderamento feminino
Por Amanda Stabile
29|08|2023
Alterado em 11|10|2023
Você sabia que, além de ritmo, o funk brasileiro pode ser considerado um movimento de resistência? Assim como o hip hop, o blues e o soul, o nosso funk é uma manifestação afrodiaspórica. Isso significa que suas raízes estão conectadas à cultura africana, cujos povos sofreram migração forçada pela colonização do continente.
No livro Cai de boca no meu b#c3t@o: o funk como potência do empoderamento feminino, a autora Tamiris Coutinho explica que o ritmo tem ligação com o miami bass, vertente do hip hop, mas também com aspectos presentes no soul e na música negra estadunidense. E como tudo relacionado à cultura negra, o funk foi criminalizado já na sua origem.
“Desde que começa uma movimentação muito forte do povo negro por meio da música, especificamente do soul aqui no Brasil, aconteceu um movimento de resistência. Principalmente porque naquele período o país passava pelo auge da ditadura militar [no final da década de 1970]”, conta Tamiris, que também é idealizadora da Braba Comunicação e coordenadora de comunicação do coletivo Funk no Poder.
“Enquanto houver produção e pessoas valorizando, também vai existir aqueles que tentam criminalizar o funk”, apontou Tamiris.
©Arquivo pessoal
O processo de identificação da juventude negra proporcionado por esses movimentos chamou a atenção dos militares por sua potência política e ideológica. Alguns donos de equipes de som até chegaram a ser detidos na época. Além disso, ver tantas pessoas negras juntas e unidas também gerou incômodo na branquitude dominante.
A autora aponta que a mídia teve um papel importante para a marginalização dessa população ao ligar episódios de violência a esse movimento cultural, social e musical. No início da década de 90, por exemplo, quando os bailes funk já haviam surgido no Rio de Janeiro, os eventos e os funkeiros foram conectados aos “arrastões”, uma tática de roubo coletivo.
Assim, o ritmo tomou espaço nos noticiários, mas com indagações de sua suposta influência criminosa. Isso contribuiu para a popularização do funk, mas também da discussão sobre o lugar do negro e de sua cultura na sociedade.
A era de ouro do funk carioca
Apesar de toda essa repressão, após a ditadura, em meados dos anos 2000, o funk viveu sua era de ouro no Rio de Janeiro. Nesse período, inclusive, a participação feminina começou a ter mais evidência na cena, como dançarinas, mestres de cerimônia (MCs) e integrantes dos “bondes”. As festas voltaram a se popularizar e começaram a tomar espaços fora das favelas.
O gênero musical foi consolidado e ganhou evidência na indústria. Entretanto, continuava sendo alvo do preconceito dos meios de comunicação de massa. E a discriminação ia muito além da crítica musical, passava também pela criminalização da pobreza e pela diminuição da importância das manifestações culturais vindas das favelas.
“É um caminho paralelo porque ao mesmo tempo que o funk estava em um ápice de glamourização, continuava sendo criminalizado”, aponta Tamiris. “Os telejornais falavam que o funk fazia incentivava os jovens a praticarem relações sexuais sem camisinha, a usar drogas e todo esse tipo de coisa”.
Para a pesquisadora, essa é uma realidade que perdura até os dias de hoje e que não vai mudar.
“Enquanto houver produção e pessoas valorizando, também vai existir aqueles que tentam criminalizar o gênero musical. O funk sofre muito com isso não apenas pela questão do racismo e do preconceito de classe, mas também por conta do conservadorismo”.
A criação das UPPs e a decadência da “era de ouro”
A partir de 2008, essa “era de ouro” do funk carioca começou a entrar em decadência, especialmente pela criação das Unidades de Polícia Pacificadoras (UPPs), iniciativa do Governo do Estado do Rio de Janeiro. Em tese, o projeto pretendia instituir polícias comunitárias nas favelas para desarticular as quadrilhas que controlavam os territórios.
Na prática, as UPPs representaram repressão e morte para as populações dos morros cariocas. Em um período de 5 anos, entre 2014 e 2018, por exemplo, as intervenções das Unidades de Polícia Pacificadora registraram mais de 8 mil tiroteios, ou seja, 4 confrontos por dia.
Em meio a esse cenário, Tamiris explica que os comandantes tinham o direito de aprovar os eventos culturais que aconteciam dentro das favelas, assim, muitos bailes funks foram proibidos. Os que obtinham aprovação para acontecer eram inacessíveis aos moradores, pois cobravam ingressos muito caros.
As gerações de mulheres no funk
Quando Tamiris iniciou o trabalho de pesquisa sobre as mulheres no funk, teve muita dificuldade de encontrar registros sobre elas e informações sobre suas dinâmicas de trabalho dentro do movimento. Mas para trazer um recorte mais amplo dessa história, ela dividiu as funkeiras por categorias de geração.
A primeira geração definida pela pesquisadora inclui as pioneiras a construírem uma carreira no funk, a partir da década de 1990. Sendo elas: Mc Cacau, Mc Dandara, Deize Tigrona e Verônica Costa.
Na virada do século, as mulheres ganharam mais evidência no movimento. Essa segunda geração trazia o Funk Putaria, cantando sobre sexo explicitamente ou usando duplos sentidos. Dentre elas: Tati Quebra Barraco, Vanessinha Pikachu, Mc Sabrina, Valesca Popozuda, com a Gaiola das Popozudas, e Juliana, com a Juliana e as Fogosas.
A partir de 2010 se constituiu uma terceira geração que cobrava respeito a seus corpos e à liderança feminina, além de manifestar o direito à própria sexualidade. Elas ganharam muito mais visibilidade do que as primeiras gerações por conta da internet. Podemos citar: Bonde das Maravilhas, Mc Carol, Ludmilla, Mc Rebecca, Lexa, Tati Zaqui, Mc Mirella, Pocah, Mc Marcelly, Mc Rita e Anitta.
A partir de 2019, a nova geração, ainda em construção, traz a lógica das faixas rosa (gíria para mulheres independentes) para suas letras. Elas são mulheres bem resolvidas sexualmente, que tem seu próprio dinheiro e não dependem de ninguém. Algumas delas são: Mc Bianca, Mc Dricka, Mc Ingrid, Mila, Baby Perigosa, Mc Nick e Tília.
O funk como potência de empoderamento feminino
Para Tamiris, o funk pode ser considerado uma potência de empoderamento feminino, um conceito que passa pela liberdade individual, mas tem um caráter muito mais coletivo. “Tem muitas questões envolvidas, a consciência crítica, cultural, social, psicológica, financeira. São questões que são interligadas”, explica.
A autora também enfatiza que “ninguém empodera ninguém”.
“As pessoas se empoderam a partir da observação, dentro de um contexto, de algum tipo de opressão e do pensamento de como elas podem romper aquilo e fortalecer o grupo que elas estão inseridas”.
Nesse contexto, a música pode ser usada como meio e canal para que essa consciência crítica que fomenta o empoderamento circule entre a população. “Por meio do funk, da batida, da dança, é possível romper determinadas opressões e continuar movendo essa roda que é o empoderamento”, aponta.
Conteúdo publicado originalmente no Expresso na Perifa – Estadão